quarta-feira, 12 de outubro de 2011

DIÁRIO DE VIAGEM

A bússola das explicações I


Nota explicativa:

Nos tempos antigos, cabia aos grandes comerciantes a responsabilidade de levar as mercadorias produzidas pelas cidades e estados para outros países e localidades. O conceito de país aqui é relativo, uma vez que estamos numa época de formação dos territórios, onde o que temos são reinos e vilas decorrentes das primeiras épocas. Naquele tempo, era dos reinos a responsabilidade de criar companhias de transportes do ressente ultramarino para que as mercadorias do oriente chegassem ao seu destino. Fora a aventura, o Mediterrâneo continuava sendo a “estrada” que levava a riqueza de um lugar para outro. Entretanto, existia um problema a ser resolvido: como fazer chegar as mercadorias até os portos e como garantir que o acordado foi de fato cumprido entre as partes. Nesse contexto foi criada a Companhia de Transportes e informações do Oriente, ou Al Karafaan (A Caravana) como era conhecida. Esta era a maior e mais conhecida organização de transportes até os portos. Além de diversos pontos de apoios espalhados pela África, Ásia e Europa a Caravana tinha uma grande fama além da capacidade de atender a qualquer demanda. Sua maior qualidade: eles eram honestos. Num mundo de distâncias e controles pífios, além do alto índice de corrupção nas companhias de transportes e reinos com monarcas de caráter duvidoso, contratar os serviços da Caravana era, para muitos, a solução mais segura e mais rentável.

A estratégia de negócios criada pelo Filho do Grande Cid, Senhor de reinos e terras e também nosso Senhor, era memorável e tem sido utilizada até os dias de hoje: Quando um rei o senhor de terras desejava ter as suas mercadorias transportadas, A Caravana se tornava sócia do senhor daquelas terras. Ou seja, parte da mercadoria transportada já era o pagamento pelo transporte. Além dessa forma de pagamento, uma parte do pagamento era feita com mercadorias de outros comerciantes. Assim, cada “cliente” possuía duas viagens planejadas a que levava as encomendas (makhraj) e as que traziam as encomendas (madkhal). Assim a taxa de inadimplência, falhas e perdas eram muito pequenas. Afinal, todos eram sócios de todos e se alguma coisa acontecesse de mal com alguém, todos saiam perdendo.

Um segundo ponto a ser observado era a tecnologia que a Al Karafaan possuía: a primeira delas era a escrita: todos os representantes, condutores de animais e demais participantes aprendiam a ler e a escrever pelo menos dois idiomas: a língua local e o árabe que era a nossa língua comercial. Para se destacar e dentro do grupo, o interessado deveria aprender o hebraico (mesmo que seja o mínimo) ou o latim. Nesse item o nosso amigo Libanês saia na frente, uma vez que o árabe era a sua língua mãe e ele conseguia ler muito e escrever um pouco de hebraico. Em compensação sabia ler e escrever em latim e falava o Espanhol. Este diferencial foi um dos motivos da partida dele para o outro lado do mar (Europa) para conduzir as novas negociações até a cidade de Granada.

Um outro motivo para o crescimento da Caravana é o fato de que os negócios precisavam de sócios. O dinheiro é coisa escassa e a desconfiança mútua era a especialidade da casa. É claro que durante este período, houveram perdas materiais e de algumas dezenas de vidas. Mas, no geral, os negócios eram bem sucedidos.

Mas o filho do Grande Cid percebeu que não só de mercadorias viveria as nações. Um dos bens mais importantes daquele tempo era a informação. Como não havia jornal ou coisa parecida, as cartas ou informativos lidos em forma de jogral nas praças eram a forma mais rápida e precisa para se ter notícia do mundo da época. Por isso, quando a pessoa demorava a responder a uma correspondência, como aconteceu com o nosso amigo Libanês a idéia de problemas (lê-se morte) era levantada pelos que ansiavam por respostas.

Mas como sobreviver a um mundo entregue à barbárie e ainda por cima obter lucro? A resposta: com segredos e método. O primeiro deles: todo grupo de transporte era composto por diversas pessoas de raças ou etnias diferentes. Ou seja, sempre teremos um judeu, um árabe, um oriental ou um africano rondando as terras distantes. Nesse sentido, ao passar por um território, sempre haveria uma pessoa “nativa” da região. Isso facilitava muito as coisas. Em segundo lugar, cada Grupo possuía uma série de rotas que mudavam de acordo com os meses. Isso evitava que ladrões conseguissem fazer grandes roubos pois, de fato, o lucro vinha do volume em circulação e não da quantidade de cada viagem. A regra era simples: muita gente carregando pouca coisa. Mais um motivo que fazia da Caravana a melhor transportadora da sua época: Só tinha gente experiente. Enquanto os Portugueses e Espanhóis chamavam jovens inexperientes e ambiciosos, a Caravana trabalhava cerca de 10 anos na vida de um líder antes de colocá-lo no deserto. Nenhum componente tinha menos de 05 anos de deserto, bem como de conhecimento dos métodos a serem utilizados. Por isso, localidades como a Cidade Fortificada eram tão importantes e, semelhante a essa, havia cerca de mais 08 ou 10 locais espalhadas pelo velho mundo. É claro, ninguém sabia quais eram as cidade pólos. Isso somente o nosso Senhor detinha tal conhecimento.

Como vocês puderam perceber, a coisa funcionava como um quebra cabeça. Os mais antigos falavam que isso era influência de certo homem que calculava e que agora trabalhava para o grande Cid. Outros falavam que isso saiu da cabeça do nosso Líder, um profundo amante da lógica e dos números que, depois de muito custo, conseguiu trazer esse calculista para trabalhar com ele nas Rotas de viagem. Sempre existe muito folclore nas coisas que não são bem explicadas. Mas acho que buscar explicação no começo do livro é tirar a graça da história.

E assim, levando contratos mercadorias, pagamentos e até protegendo pessoas, esse exército de peregrinos trabalhavam diuturnamente buscado cumprir o seu período de “caminhada” (nome dado pelos viajantes para esse período que poderia durar até vinte anos e que, após o cumprimento dessa etapa, o viajante poderia escolher voltar a sua terra natal ou morar na casa do Grande Cid e sua família). Como a maioria dos viajantes, também chamados de peregrinos eram celibatários, acabavam se dirigindo para a casa do nosso Senhor. Kalil era uma exceção, ou melhor, ele representava uma nova tendência onde a vontade de se constituir família ficava cada vez mais forte.

Alguns conselheiros atribuíam essa tendência ao papel que a noiva do filho do grande Cid começou a ter na vida do nosso Reino. Influência positiva, pois a condição da mulher precisava ser revista. Nessa mesma época as traduções* começavam a fazer mais sentido para cada peregrino. Por isso, quando Elmira se casou, houve o envio de um presente específico para ela, além do presente para o próprio Naham.

Isso explica um pouco a dureza do nosso amigo Libanês. Ele sabia que se ele quisesse crescer no Reino do nosso Senhor, ele deveria abrir mão do conforto da cidade fortificada e enfrentar o deserto e as cidades desconhecidas do outro lado do mar. Quando houve o chamado, largou tudo e seguiu. O que ele não esperava era ser promovido a embaixador.

Bom, vamos explicar logo de uma vez que... Ou melhor, vamos esperar mais um pouco para explicar sobre esse assunto.



Salaam Aleikum (Que a paz esteja sobre vós).

segunda-feira, 20 de junho de 2011

CHEIRO DE AMIZADE



“Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas”

Antoine de Saint-Exupéry


Carta dos portos da Cidade Fortificada endereçada à Caravana em nome do Grande Cid Amim Aanisan, em comitiva além dos mares médios:

Louvado seja o nosso Senhor que nos deu mais um dia para trabalharmos em seus serviços!


Ao nosso irmão Libanês, receba os ventos de saudades dos seus queridos. Quem escreve é vosso amigo Kalil, relatando nossos procedimentos.


Conforme solicitado, já estabelecemos o contato com as frentes de trabalho do sul africano. Temos conseguido enviar todas as encomendas pelo porto de lá. Ainda considero muito demorado o pagamento, mas quero considerar que se trata mais de ansiedade de um velho sabujo do que problemas com barcos. Peço orientações sobre esse assunto.


Meu caro, temos encaminhado cartas pedindo notícias suas; todas sem sucesso. Queremos dizer que nossa casa está alegre. Elmira trás em seu ventre uma criança e a cada dia Naham assume um papel importante em nossa cidade.


Logo após a sua partida, nossos moradores sentiram falta de termos uma casa de oração maior. Por isso, paralelamente aos nossos afazeres, estamos ampliando a nossa casa para recebermos aqueles que nos visitam. Temos levantado mais cedo todas as manhas para retiramos um tempo maior para meditar. Sentimos paz em prosseguir.


Segui a sua recomendação e vendi todos os animais que não servem para as grandes viagens. Também construímos um novo armazém para guardar as mercadorias adquiridas pela Caravana. Para essas tarefas, tenho contado com o coração e a disposição da minha amada Alice.


A cada cesto que nozes e tâmaras que chega, percebo o seu cuidado na escolha das mercadorias e pelos valores que os relatórios registram, a pechincha tem sido grande... Cuidado para não levar uma sova por baixar tanto os preços.


Libanês, vejo-me numa situação ridícula, mas o renovo do coração tem gerado um renovo nos braços e pernas. Sinto-me mais forte e disposto. Acho que parte dessa nova energia são os frutos que temos torrado das sacas de café. Temos servido todas as manhãs, seguindo a sugestão do seu emissário.


Mas amigo, temos recebido apenas recados, notas e instruções dos nossos afazeres, sem saber notícias pessoais. Estamos preocupados e porque não dizer, ansiosos. O que foi feito de ti Libanês? Não contas nada há meses.


A marca do teu anel em cada instrução técnica que recebemos é a única lembrança da sua pessoa. Lembrança fria. Uma lembrança pouca de quem busca ver sentimento onde não existe.


Meu amigo lembre-se do poeta: Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas.


Não veja essa afirmação como um fardo. As cordas que formam a rede trazem consigo a responsabilidade se suportar peso uma das outras, mas é essa mesma força que equilibra e alivia o peso a ser carregado.


Agora a nossa amizade faz falta e as cartas reaquecem a lembrança que a nossa família guarda de ti. Não sentes saudades de escrever para a sua Canaã?

Às vezes, Alice prepara o nosso café e coloca mais uma caneca na mesa. Ficamos com aquela esperança infantil de ver o nosso amigo chegar. O aroma do grão queimado, o vinho servido fresco com carneiro e legumes, a lamparina acessa na janela central do minarete. Tudo traz a nossa memória lembranças suas.



Somos cativos dessa amizade. Estamos ligados a esse querer bem. Sou homem e velho suficiente para registrar que esperamos tê-lo de volta em nossa casa.


Escreva para nós. Uma poesia, algo que traga a nossa boca o gosto da nossa amizade. Conte-nos as suas aventuras, as suas desventuras também. Conte-nos por onde tens passado. Diga-nos como é afinal esse novo mundo que os seus olhos enxergam.


Mas não fique em silêncio, meu amigo. Quando ficamos em silêncio perdermos a oportunidade de ser bênçãos sem querer.


Elmira chegou a pouco, enquanto escrevo mais essa carta para ti. Ela também manda um abraço fraterno. Quanto a Naham, parece que tem o seu sangue para os sentimentos: guardando calado, mas com aquela cara de que vai estourar de tanto falar a qualquer momento.


Lembre-se que somos e sempre seremos um só, em nome do nosso Senhor aqui nessa terra e que aguardamos um breve retorno para comemorarmos esse sentimento.



Do seu irmão e amigo



Kalil. – Mestre de Tropas do Grande Cid Amim Aanisan.



sábado, 6 de novembro de 2010

CARTA DE DESPEDIDA


Toda honra ao grande Cid Amim Aanisan: Senhor de terras, cidades e também nosso Senhor: O único que merece o nosso agradecimento.

Saudações meu caro Nahan. Peço desculpas por não estar pessoalmente conversando sobre esses assuntos.

É necessário esclarecer os motivos da minha partida para que não haja na história das nossas vidas o registro de algum equívoco ou rancor.

Cada um de nós recebeu uma carta do nosso Senhor com respostas de pedidos para o futuro. Você recebeu a loja, Kalil recebeu o comércio de animais e eu recebi o privilégio de representar a nossa bandeira fora das nossas terras. Mas você sabe meu amigo que a responsabilidade é irmã siamesa da oportunidade.

Diante desse quadro, recebi a incumbência de partir imediatamente para não perder o barco que me levaria ao outro lado do mar. Os negócios do nosso Senhor precisam de atenção no ocidente. Há rumores de uma nova guerra prestes a estourar e precisamos estar presentes para garantir a segurança dos nossos irmãos e dos interesses da nossa casa. A impressão que tenho é de que quanto mais alva é a pele de um homem, maior é a sua ambição. Conto maiores detalhes quando for possível.

Escrevo esta carta dentro do barco, sofrendo enjôos infernais, mas resistindo, na medida do possível. Não se preocupe com a minha segurança. Estou com duas sentinelas comigo que serão minhas companhias nessa nova etapa da vida. Não sei quando escreverei novamente. Esta carta será entregue por um timoneiro da nossa confiança que retornará com o barco. Quando houver uma rota segura para a entrega de novas correspondências você ficará sabendo.

Não terei um lugar para morar. Minha casa agora é a necessidade. Além disso, não é seguro receber cartas mostrando vínculos. Por segurança, encaminhe todas as cartas para o Clérigo Samir. Ele saberá como me encontrar.

Peço que restabeleça contato com os nossos irmãos no sul da África. Levante o tempo necessário para encaminharmos nossos carregamentos até o porto. Pague antecipadamente, se for necessário, para ter estas informações.

Mas vamos deixar esses assuntos duros de lado por um instante...

Como foi o casamento? Certamente Elmira estava radiante. Não há nada mais belo do que uma mulher que exala o amor sincero. Cultive esse aroma todos os dias e o seu casamento será um local de descanso. Da mesma forma meu amigo, nunca deixe que o seu caráter esmoreça, pois um homem sem firmeza de valores não mantém o amor de uma mulher. Lembre-se que de nada vale uma leoa forte sem um leão que não defende a sua área;

Meu caro, sabes que lhe considero como um filho e como pai faço algumas recomendações que aprendi nessa minha caminhada:

Seja fiel às promessas ditas no interior da sua casa. Seja simpático com todos e paciente, mas firme com os soberbos; aprenda a perceber a presunção, principalmente a sua. Presunção é vender algo por um preço maior do que vale, é fazer da fantasia uma realidade improvável, é pecado mortal.

Seja simples, nunca simplório. Leia diariamente o livro da sabedoria e os evangelhos. Quando não entender o sentido das palavras, procure a ajuda de um escriba ou do amigo Samir. Se nenhuma explicação trouxer paz ao seu coração, retire-se em silêncio para algum lugar e medite. Que a sabedoria do Grande Cid Amim esteja contigo.

Lembre-se Naham: Valorize os amigos. Amigos são aqueles poucos que podemos contar sempre, seja para comer a boa carne, seja para roer o pão duro. Peço que faça uma lista com o nome dos nossos amigos e lembre-se de cada um deles nas suas orações. Lembre-se também de mim.

Não fique irado com os mais velhos pelas manias deles, principalmente o bom amigo Kalil. Aprenda a conhecer o sentido que as pessoas querem alçar através das suas atitudes.

Cuidado com as palavras, não inventaram nada mais letal do que as palavras. A letra fere. Não julgue ninguém. Se der uma vontade imensa de dizer impropérios contra uma pessoa mesmo que, a princípio, essa lhe pareça merecedora de correção, segure as palavras na sua boca. Morda a língua se preciso. A sua impetuosidade pode ser a sua aliada, mas também é a sua pior inimiga.

Não existe nada fácil nesta vida. Por isso desconfie das ofertas de mercadoria muito abaixo do preço habitual. Aprenda a viver com uma margem de preço uniforme, pois a calma e disciplina de quem vende é a segurança de quem compra.

Elimine os animais fracos, as árvores que não estão dando bons frutos e dispense os empregados preguiçosos. Se você esmorecer nesses pontos, toda a sua segurança estará ameaçada.

De vez em quando, leia esta carta para relembrar estes valores eternos e que estão acima de qualquer opinião. As palavras certas são tesouros na mão de quem busca o crescimento.

Sempre estarei com vocês em pensamento.

Que a paz esteja com todos.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A FELICIDADE ESTÁ NO CAMINHO



Aqui encerramos estas estórias.
Existem novas para se contar.
Talvez um dia, talvez não.
Tudo depende do caminho.


O quarto que antes abrigava o nosso amigo Libanês agora está vazio. Por sugestão do Clérigo da Cidade, aquele local deveria estar sempre pronto para o retorno do viajante ou para hospedar qualquer outro visitante ilustre.

Olhando para o passado, percebemos as grandes ações destes três homens. É fácil subir em um palanque ou em uma caixa de frutas e começar declamar discursos ou palavras de ordem. É relativamente fácil afirmar para quem passa pela nossa vida: “Olhem para mim”, quando devíamos dizer: “Hei, olhe para o lado. A resposta está lá fora”. Quem tem coragem de dizer isso?

Temos a capacidade de influenciar muito mais com aquilo que fazemos em detrimento daquilo que falamos. Estes três falavam pouco. Mas influenciaram uma Vila inteira com uma vontade de fazer a coisa certa. Essa vontade contaminou o ferreiro, o oleiro, o padeiro e quando nos demos conta, uma parte dos moradores vivia este novo modo de ver a vida. É claro que não houve unanimidade. Isso não existe. Mas é interessante observar que quando a boa palavra prevalece em um ambiente, a mediocridade se cala.

Mas o caminho também ensina que precisamos acrescentar mais prudência nas nossas atitudes. Julgamos com muita rapidez as pessoas e as situações. Erramos porque não temos a paciência de analisar. É como se passássemos em disparada por um diamante que está jogado na estrada e que, certamente, teríamos percebido presença dele se estivéssemos caminhando com mais calma.

É interessante observarmos o ditado que a minha sogra sempre recita na cozinha da nossa casa: “Quem está com pressa come cru”. Tudo bem que o ditado não vale muito para a criançada que fia ao lado dela esperando o pão ou os biscoitos. Mas esse é um ensinamento diamante que só se aprende se você passa mais devagar pela estrada.

Não foi e ainda não é fácil lidar com a impetuosidade de Naham que gosta de resolver logo as coisas, da teimosia de Kalil em aceitar uma nova idéia, da altivez de Alice que não aceita uma sugestão para tratar melhor os camelos. Se for de um homem então, o céu cai antes de ouvirmos um “eu aceito”. Ninguém é perfeito. A perfeição se faz com as pedras que encontramos no caminho.

Foi riste perceber isso só agora, olhando para este quarto vazio. Entretanto, se observarmos a estátua do Tuareg feita pelo bom ferreiro Sarosh a resposta sempre esteve diante de nós. A estátua era o sonho do Libanês e o sonho só se realizou quando ele deixou a estátua para traz.

Às vezes colecionamos coisas que só mostram o seu valor quando doamos esse tesouro para alguém. Não são as coisas que dão sentido, são as atitudes.

De fato, a verdade está no caminho...

Este é o relato de Samir Khuri - Clérigo desta Cidade.

 

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A CIDADE FORTIFICADA



“Levantarei os meus olhos para os montes:
De onde vem o meu socorro?
O meu socorro vem do Senhor que fez o céu e a terra.
Não deixará vacilar o teu pé; aquele que te guarda não cochilará.
Eis que não cochila nem dorme o guarda de Israel.
Ele é quem te guarda; o Senhor é a tua sombra à tua direita.
O sol não te molestará de dia nem a lua de noite.
O Senhor te guardará de todo o mal; guardará a tua alma.
Ele guardará a tua entrada e a tua saída,
desde agora e para sempre” (Salmo 121).

Já se passaram algumas semanas desde o dia que a pequena Vila viu o casamento de Naham e Elmira juntamente com Kalil e Alice. Foi uma cerimônia simples, mas singela e cheia de significado.

Falamos de como é bom encontrar uma pessoa que sonha os mesmos sonhos que temos, de que os pequenos gestos, como o caso das lentilhas, podem desencadear uma infinidade de outras oportunidades de construímos o nosso caminho. Concluímos a reflexão falando da importância do outro na vida da gente, de que a felicidade está no caminho e que devemos sempre lembrar que tudo começa com a sinceridade e a transparência.

Alguns convidados e todos os moradores participaram da cerimônia de casamento. Todos menos o nosso amigo Libanês.

Lembremos:

Pouco tempo antes da cerimônia, o jovem, o homem e o velho receberam do venerável Cid Amim Aanisan, uma carta endereçada a cada um deles.

Na carta para Naham, o Senhor dessas terras deu ao jovem casal como presente de casamento a lujinha para que essa se torne fonte de sustento para a sua família. Entretanto, a carta trazia um convite que estabelecia um contrato entre a lujinha e os negócios do nosso Senhor. Aquela vila deveria continuar a ser um ponto de venda de amimais e porto seguro para as caravanas de comércio além de lugar de ensino para os jovens antes de seguirem para o outro lado do mar para dar continuidade aos estudos. Agora, todas as novas encomendas devem ser encaminhadas ao viajante que representará os negócios e cabe a ele o controle de entrega dos artigos importados. Naham aceitou o presente e o contrato de comércio. Saiu em disparada para contar as novidades à Elmira. Só nos vimos pouco antes do início da cerimônia, como convêm nos costumes.

A carta para o velho dizia que ele agora era um homem livre para assumir a liderança da sua família. Entretanto, o Grande Cid Amim convidou os dois para serem os representantes do seu governo na direção das caravanas de comércio, do transporte de gado e dos novos produtos que em breve começariam a chegar naquelas terras. Caberia a eles, entretanto, estabelecer um bom relacionamento com o viajante que seria o representante do Senhor naquela terra. Não poderíamos desperdiçar nada, pois já se ouvia rumores de guerras do outro lado do mar e esta situação sempre atrapalha a vida e os negócios. Kalil foi ter com Alice para contar as novidades. Quando voltou para conversar com o grupo na fonte da capela, encontrou apenas o Clérigo preparando sua reflexão para o casamento.

A carta endereçada ao homem dizia que o seu Senhor reconhecia todo o seu esforço em fazer da vila uma cidade fortificada. A carta também aceitava a fidelidade do bom amigo Libanês, mas ela trazia o temor que o seu Senhor tinha com relação aos rumores de guerra que estavam surgindo do outro lado do mar. “Nossos negócios estão ameaçados. Preciso de uma pessoa de confiança que veja o que está acontecendo e que me traga notícias e resultados. Quero que você seja o meu viajante. Leve apenas o essencial, vista as roupas que enviei e parta agora. O meu nome e a minha força estarão com você. Os soldados que enviei acompanharão você durante toda a sua jornada. Eles obedecerão a qualquer ordem sua. Por isso, cuidado com o que você fala. No seu lugar o meu servo Khuri cuidará do futuro dos seus amigos. Leia as demais orientações com calma e memorize-as. Ah! Aproveite o presente que está lá fora”.

“Preciso escrever uma carta”, disse o Libanês. Mas não havia tempo para escrever. Ficou a cargo do Clérigo contar sobre as novas ordens e ações.

As roupas brancas deram lugar a roupas de cor cinza, típica dos viajantes. O turbante azul deu lugar a um preto e no lugar de uma simples faixa o peito trazia uma cinta e uma espada. Os pertences do nosso amigo estavam em uma pequena bolsa que ele trazia ao lado. Todos os mantimentos e necessidades de viagem já estavam com os soldados.

Ele não mais voltou à capela ou a qualquer parte da cidade. Ele saiu pelo portão do Minarete de Aslan. Só o Clérigo presenciou a sua partida. Um aperto de mão e palavras do Salmo 121 foi o que ele levou daquela antiga vila que hoje se mostra uma cidade fortificada.

Ao encontra-se com os seus guardiões, viu que ao centro estava um garanhão árabe, que é o rei dos cavalos: o mais belo tordilho que já tinha visto. Esse era o seu presente.


E foi assim que saíram em silêncio sem serem percebidos pelos demais. Boa despedida é aquela feita em silêncio, sem alarde, para que não desperdicemos os sentimentos. Devemos degustá-los como um vinho fortificado ao final da refeição. Trazendo a mesa da memória os sentimentos bons e perdoando os sentimentos ruins.

“Onde estão todos?” Perguntou o bom Kalil ao retornar para a capela acreditando que os amigos ainda estavam ali. “Meu amigo, cada um saiu para se encontrar com o destino”.

Este é o relato de Samir Khuri - Clérigo desta Cidade.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

ACERTANDO AS COISAS

“Se eu escolhi você para o trabalho, então significa que é possível ser feito com o que temos, não? Agora vão e que as boas notícias cheguem em breve a minha casa.

Mais uma coisa, quero que cuidem de uma pequena loja que comprei na Vila.”*

O Grande Cid Amim Aanisan
Senhor de terras, cidades e também nosso Senhor



Vamos abrir mais um dia que é hora dos trabalhos. Agora, o bom amigo Kalil não cuida mais das compras da lujinha. Esta é uma tarefa feita por Nahan. Quem diria: de pobre desafortunado para um promissor líder desse povo. Kalil quer se dedicar aos negócios de animais e transporte de mercadorias que precisam sair e chegar com a devida segurança.

Os acontecimentos que vocês presenciaram através das minhas narrativas foram devidamente registrados e enviados para o conhecimento do nosso Senhor, juntamente com a contabilidade da nossa lujinha. No último caderno encaminhado no mesmo dia do aceite de casamento de Kalil, escrevi ao nosso senhor as seguintes palavras: “Meu Senhor, de tudo o que temos visto e ouvido, entendemos que cumprimos a vossa determinação de prosperar nesta terra. Agora, se nos fosse permitido, rogo à sua bondade que dispense nosso amigo Kalil para que ele assuma os negócios da sua nova família. Peço também para que a nova família que agora é erguida pelas mãos de Nahan e Elmira seja responsável pelos negócios da sua loja. Quanto a mim, meu Senhor, continuo aos seus serviços enquanto durar a Sua vontade sobre a minha vida”.

A carta e os cadernos foram entregues ao nosso Clérigo que tinha uma audiência com o nosso Senhor, por algum motivo que desconheço. Quem pergunta muito acaba respondendo algo que não quer. Apenas aproveitei a ocasião e expliquei qual era o conteúdo de cada carta e, se possível, que o nosso sacerdote intercedesse pelo bom futuro dos nossos amigos. Após ouvir as minhas palavras recebi a promessa de ele seria testemunha dos fatos registrados. A sorte estava lançada.

Não tive coragem de contar aos outros o meu pedido. Levantaria falsas esperanças e isso seria muito ruim, principalmente às portas de dois casamentos. A solução foi focar no trabalho e não ficar pensando muito nisso, como se fosse possível não pensar muito nisso.

Enquanto a resposta não vinha, durante as minhas noites de insônia, ficava lembrando a conversa que tive na casa do nosso Senhor quando hesitei em aceitar a tarefa de me mudar para esta Vila. Somos chamados para fazer algo que não gostamos, em lugares que não desejamos estar. O que não me disseram é que podemos aprender a gostar de algo ou das pessoas que passam pelo caminho. Lembrei do olhar para os lírios plantados no jardim, lembrei da cadeira alta que fica no jardim interno, próximo a uma oliveira. Meu Deus! Como sou um estúpido! De fato, a ansiedade é uma espécie de burrice!

Por que esconder? Durante os dias de espera e preparativos, a vontade de deixar aquele lugar voltou a visitar os meus pensamentos. Agora a motivação era pelo senso de dever cumprido e não mais pela falta de entendimento.

Faltam dois dias para as festividades. Fui chamado pelo nosso Clérigo que me esperava no chafariz interno da nossa Capela. Deixei os afazeres da lujinha e fui ter com ele esperando sei lá o que. Estranho, na porta da casa de orações estava esperando alguns berbères com cavalos, coisa rara por esses lados... .

Após as saudações costumeiras, recebi três cartas com o selo da casa do nosso Senhor. A primeira carta tinha o nome de Nahan, a segunda o nome de Kalil. A terceira tinha o meu nome. A minha carta começava com a seguinte frase:

“Meu amigo Libanês, você compreendeu o deveria ser feito.”



* leia a postagem de 03 de março - TODO INÍCIO É ESTRANHO E DUVIDOSO

quarta-feira, 14 de julho de 2010

TODOS NÓS PRECISAMOS DE UMA CANAÃ



Avassalador
Chega sem avisar
Toma de assalto, atropela
Vela de incendiar
Arrebatador
Vem de qualquer lugar
Chega, nem pede licença
Avança sem ponderar
(Lenine)


Falta um pouco mais de um mês para o casamento de Nahan e Elmira. Muitos dos nossos clientes e amigos já confirmaram presença para as comemorações, não poucos já mandaram os seus presentes. Recebemos uma carga especial de vinho fresco e novidades. Teremos cordeiros, aves e um novilho inteiro para comemorar. As senhoras começaram a planejar as receitas dos pães. O cheiro de festa é doce e envolvente.

Kalil, que antes se prendia em tarefas domésticas e viagens de trabalho, agora dedica tempo e mais tempo em audiências com a mãe de Elmira. No final do dia, enquanto fechávamos as portas, Kalil me chamou no grande balcão de ébano para conversar. “Libanês, as coisas mudaram muito desde o dia que chegamos a essa vila. Com o casamento de Nahan, fico me perguntando o que faremos em seguida”. “O que você quer que eu faça”, usei a mesma frase que Kalil disse a Nahan, já esperando a resposta. “Quero ter uma referência na vida. Trabalhar na lujinha tem sido algo de muito valor. Entretanto, depois desses anos todos, entendo que é hora de mudar. As coisas não fazem sentido como antes.”

Sempre admirei a força e determinação de Kalil. Sua trajetória de trabalho se inicia ainda bem moço quando começou a trabalhar com o Pai do nosso senhor. Sempre gostou de cavalos, camelos, caravanas e viagens. Era um homem direto, com rosto rude mas com uma educação e polidez que nenhuma escola do outro lado do mar ou mesmo na velha Síria são capazes de produzir. Era o especialista em negócios com os irmãos Tuaregs, talvez pela sua origem e com os africanos mais ao sul, com certeza, por falar a língua Zulu, dominante daquelas terras. O conhecimento de um homem desses vale ouro e agora, vejo este ouro sendo lançado fora, pois o seu depositário não acha nele valor algum. “Estais cansado de tanto caminhar meu amigo. Está na hora de achar a sua Canaã.”

Estávamos olhando para os nossos copos com chá de pêssego e cassis em cima do balcão. Perguntei onde a Sra. Karim entrava nesse sonho. A resposta veio com um olhar de homem prestes a se entregar de mãos ao alto e desarmado: “meu amigo Libanês, ela é o sonho”. “Então, meu caro amigo, aqui está a resposta da sua pergunta”.

A questão maior agora era como declarar esse amor. “Apresentar o sentimento de jovens é coisa relativa fácil (no caso de Nahan, suamos como chaleiras). Mas não cabe um papel desses a um homem maduro e a uma mulher na posição da Sra Karim. “Libanês, vivo um dilema que só os altos céus podem ajudar”. “Karim é a minha Canaã”.

O poeta escreveu certa feita que existem duas belezas: a que se vê e a que se sente. A beleza vista é a que nos chama a atenção para os olhos, para o corpo e para a voz. Mas a beleza que se sente é aquela que sentimos a falta da pessoa quando esta não esta por perto. O sentimento de Kalil já alcançou estas duas belezas.

Ficamos matutando um pouco mais agora olhando para os copos vazios. Acabou-se o chá que trouxemos do outro lado do mar. Agora só a lembrança doce das frutas e do licor. Quem poderia representar o nosso amigo em nome desse pedido? Abri o livro da sabedoria de Salomão. Com tantas mulheres, vai ver que ele deixou uma dica em código que só pode ser interpretada por homens desesperados como nós. Nada foi encontrado. Ficamos folheando livros sem um objetivo até nos depararmos com uma folha em branco.

“Kalil. Tive uma idéia”. Meu velho amigo vendo o meu olhar para a folha em branco desabafou: “a mais de vinte anos, toda vez que você faz essa cara, eu me meto em algum problema”. “Já escuto o barulho de muitos cavalos saindo dessa sua cabeça. E pare de levantar a mão e de sorrir me pedindo calma!”

Depois de acalmar o leão, pedi ao velho amigo que, no outro dia, marcasse um encontro com a sua Canaã. Ele seguiu as instruções (ou por desespero, ou por esperança, ou pelos dois) e disse a ela que ele precisava se afastar um pouco para conseguir expressar a imensa quantidade de sentimentos que fervilhava seu coração. Estávamos no início da semana e a Sra. Karim pediu com voz calma que ele voltasse no final dessa, pois também estava com muitos sentimentos, alguns desses já esquecidos pelo tempo.

“O que ela quis dizer com sentimentos esquecidos... Libanês?” “Isso é quase um sim, meu amigo. Isso é quase um sim.”

Convenci o velho amigo que o mais sensato era dormir. Após vencê-lo pelo cansaço, fiquei com a minha insônia, a minha folha em branco e alguns livros abertos. Meus pensamentos retornaram para as palavras do rei Salomão, mas agora em outro livro.

É interessante como as palavras inspiram; como acabamos por mudar o nosso jeito de pensar sobre um determinado assunto ou pessoa quando lemos determinadas palavras que se organizam e formam frases únicas.

Acordei o meu bom amigo antes do sol aparecer. Apresentei a idéia e as palavras que se formaram. Ele consentiu e escreveu o seguinte dizer ma frente do envelope:

“Doce Karim, receba estas palavras que representam o meu sentimento. Entretanto esta poesia está incompleta. Somente as suas palavras podem completá-la”.

* “Dize-me, ó tu, a quem ama a minha alma: Onde apascentas o teu rebanho, onde o fazes descansar ao meio-dia; pois por que razão seria eu como a que anda errante junto aos rebanhos de teus companheiros?

Se tu não o sabes, ó mais formosa entre as mulheres, sai-te pelas pisadas do rebanho, e apascenta as tuas cabras junto às moradas dos pastores.

Formosas são as tuas faces entre os teus enfeites, o teu pescoço com os colares.

Enfeites de ouro te faremos, com incrustações de prata.
Eis que és formosa, ó meu amor, eis que és formosa; os teus olhos são como os das pombas.

Vem comigo do Líbano, ó minha esposa, vem comigo do Líbano; olha desde o cume de Amana, desde o cume de Senir e de Hermom, desde os covis dos leões, desde os montes dos leopardos.

Enlevaste-me o coração, minha irmã, minha esposa; enlevaste-me o coração com um dos teus olhares, com um colar do teu pescoço.

As muitas águas não podem apagar este amor, nem os rios afogá-lo; ainda que alguém desse todos os bens de sua casa pelo amor, certamente o desprezariam”

Em resposta, o nosso amigo recebeu as seguintes palavras:

** “Não me instes para que te abandone, e deixe de seguir-te; porque aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus.”


* trecho do livro de Cantares de Salomão
** trecho do livro de Rute

segunda-feira, 14 de junho de 2010

APAIXONE-SE

"Amor é fogo que arde sem se ver;"
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer

A lujinha já estava aberta e as pessoas entraram às compras. Teremos uma boa semana. Recebemos queijos defumados e damascos secos. Todos estavam ocupados e agitados para atender tanta gente no balcão. Todos menos Nahan. O seu olhar estava longe. Seu foco agora era ficar pensando em Elmira. Tanto que o velho Kalil teve que atender uma senhora que estava na frente de Nahan com um cesto de ameixas. “Desculpe-me minha senhora. O jovem está doente.”

Quando o sol se colocou no topo do dia, as atrapalhadas de Nahan já eram motivo de piada dentro da lujinha. “Ei, moço pegue uma caneca de Elmira, digo, de ervilha para o cliente”. “Kalil atira bra tudo quanto é lada; eu não. El-mira”, dentre outros jogos de palavras e brincadeiras provocativas. Mas nada tirava a cara de bobo e o sorriso de auto-satisfação do nosso jovem amigo. Por volta do fim da tarde, não aguentamos tanto mel. “Nahan, o que você quer que façamos para resolver isso?” Disse Kalil com a mão no ombro do jovem calado. Nahan olha nos olhos do velho amigo e dispara: “Tio, apresente meu pedido de casamento à família de Elmira. Quero me casar com ela.” Kalil já não sorria mais. Balbuciou um “mas” e ficou olhando para mim, balançando o braço como se eu tivesse que dar alguma resposta. Não aguentei e soltei uma gargalhada para os dois. “Libanês, eu não sou o pai desse inquieto”, respondi que ele era o mais velho e a tradição diz que os mais velhos representam as famílias dos noivos. “Mas seu libanês, você é mais velho do que Nahan vinte anos, disse Kalil com a voz embargada. “E eu sou 20 anos mais novo do que você Kalil. Logo, você é o representante, meu bom amigo”.

“Está bom. Com quem devo conversar?” “Com a mãe dela”, respondi já esperando uma reação explosiva. “Mãe de quem?” “Vou ter que sentar com a mãe dela para tratar do casamento?” Esbaforiu o Kalil já sentando sem cima das sacas de cevada. Explicamos que a senhora era viúva e que ela era a líder do grupo e a responsável pelos negócios e pela a sua única filha. Por isso o gênio forte. “Então eu não sei? Com tanta moça você teve que gostar da mais brava?” “Até os irmãos Tuaregs tem medo de negociar com esta mulher”. “Libanês! Você me paga!”.

Preparamos uma cesta com queijos, frutas e azeites, mandamos para a casa da moça e pedimos uma audiência para o dia seguinte. A família de Elmira se instalou do outro lado da vila onde ficam as arenas e vendas de animais. Esse era o negócio da família dela.

No dia seguinte Kalil e Nahan foram conversar com a ilustríssima senhora Alice Karim. A conversa foi tranqüila e a senhora Alice foi direta: “minha filha é o meu maior tesouro. Como este jovem vai sustentá-la?” “Com muito trabalho", respondeu Nahan com uma voz leve mais firme. A senhora Alice mandou chamar Elmira. A jovem chegou até a sala principal cobrindo o rosto, como se faz nos costumes. Elmira ouviu da mãe o resumo da conversa e a pergunta. “Filha: você ama este jovem?” A resposta afirmativa e o sorriso mesmo parcialmente escondido pelo véu não deixou dúvida sobre o desejo da filha. “Vi a capacidade do seu filho senhor Kalil quando a tempestade de areia tomou conta dessa vila. Vamos acordar os preparativos.

Kalil que antes estava reticente com a conversa agora ficava admirado com a firmeza e, ao mesmo tempo, doçura da senhora Karim. O dia desdobrou e os assuntos também. No final, os dois se despediram da mãe e da filha.

Em silêncio, o jovem e o velho voltam para a lujinha pensando na conversa que tiveram com aquelas mulheres simples e, ao mesmo tempo, tão encanadoras e enigmáticas. No mais, só a certeza que um apaixonado foi e dois apaixonados voltaram.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

CORTE, CONCENTRE, SIMPLIFIQUE

“A coisa mais importante é fazer da coisa mais importante a coisa mais importante”.

Duas casas destelhadas, as paredes da forja do amigo Sarosh, o portão da ala direita e, infelizmente a pequena capela estavam no chão. É interessante que só damos valor para algumas coisas quando já não temos mais essas coisas ao nosso lado. Para piorar, as pessoas não sabiam por onde começar a arrumar.

“Quem morava nas casas?” Perguntei já sabendo que a casa era de aluguel e que o dono das casas não morava perto de nós.”Ninguém morava lá” respondeu o amigo Sarosh. “Estão fechadas há meses”. “Onde o dono mora?” “Há dois dias daqui”. “precisamos avisar que a suas casas estão sem telhado e muito sujas pela areia. Aliás, precisamos de um mensageiro que vá até ele, pois vamos comprar as casas”. Sem entender nada, conseguimos um mensageiro que foi levar as “boas” notícias e a nossa proposta de compra. “E agora tio?” Perguntou o Bom Nahan ainda meio incrédulo diante de tanta determinação. “Chame as senhoras; mande limpar a casa”.

O nome dela era Elmira, que significa princesa. O Bom amigo Nahan chegou até a jovem berbere e perguntou se ela poderia ajudar na organização e limpeza das casas. Tudo combinado, a areia começou a sair e os detalhes da casa começaram a reaparecer. As mulheres retiraram um mundo de areia. Os homens retiraram as telhas quebradas e madeiras que precisavam de substituição.
“Kalil, chame os jovens e os fortes.” Reunidos em frente da forja do velho Sarosh. A ordem era reconstruir a oficina o mais rápido possível. “De onde vamos tirar as pedras, ferro e madeira?”, perguntou o meu bom amigo alisando as barbas brancas e apresentando um sorriso no canto dos lábios. “Retire da capela. Separe o essencial. Aproveite o resto como material de construção”.
Para piorar, meia dúzia de diáconos vieram conversar conosco. Na hora da crise, tudo o que não precisamos é de pessoas que não sabem da missa o terço e que só querem puxar para baixo, quando precisamos de pessoas que nos puxem para cima. “Senhores: querem nos ajudar, então as pás e os martelos estão logo ali. Se não, de-nos a devida licença. A conversa com nosso Clérigo foi mais tranqüila. Pedi apenas que confiasse e que indicasse o que era essencial.

A forja já estava funcionando; as casas já estavam limpas. Recebemos a resposta que o dono aceitaria a quantia que tínhamos mais três juntas de camelos jovens. “Onde conseguir camelos jovens depois de uma tempestade dessas?” Gritou enfurecido o bom Kalil. “Tenho os três mais belos Jamales da região. Pode levá-los” disse em tom firme o bom Nahan. “Tenho dois animais jovens. Leve-os também” surpreendeu Elmira com aqueles olhos verdes e atitude firme. “Não tenho um animal jovem, mas leve esta fêmea com este filhote. Para fechar o negócio, pedimos ao nosso Clérigo que era o dono da mamãe camelo e seu filhote e ao bom Nahan que levasse o pagamento.

Ao retornar, quase toda a cidade estava limpa. Faltava apenas o conserto do portão da ala direita que ainda não abria e forçava aqueles que passavam a entrar pelo portão próximo ao Minarete do Leão.

Quando os nossos viajantes chegaram, todos nós demos as boas vindas em frente ao jardim que separa as duas casas. Quando eles entraram, perceberam que a antiga casa deu lugar a nossa nova capela. Uma capela maior, mais confortável, e muito mais coerente com o nosso povo. Pouco se via da antiga Capela e a nossa idéia era desaparecer qualquer vestígio da antiga capela com a ampliação dos jardins das duas casas.

Todos reunidos, numa mistura de felicidade e muito cansaço, mesmo sendo tarde da noite, nosso Clérigo leu parte do livro de Neemias.

As coisas pareciam mais simples, as pessoas estavam mais próximas e o sentimento de resgate às nossas prioridades contagiava todos aqueles que estavam nas casas. Todos menos Nahan e Elmira que não pararam de trocar sorrisos e olhares um para o outro

domingo, 30 de maio de 2010

O MINARETE

“A palavra minarete é derivada da palavra minar ou farol. Talvez, essas estruturas tenham derivado das torres de sinalização e vigia.”





As vendas da nossa lujinha de idéias caminham bem. A pequena vila já tornou ponto de parada das caravanas e negócios da região. Os aldeões que antes eram reféns de um comportamento sem perspectivas, agora propõem parcerias, ajudam e são ajudados.

A areia que mede o nosso tempo aqui está se findado. O bom Kalil, que antes se apresentava forte e bem disposto, agora se dedica às tarefas domésticas e reclama a cada necessidade de sair, até para a vistoria dos poços de água que duram menos do que um dia de caminhada. Nahan é agora um jovem. O menino que antes corria pelas ruas aprontando aqui e ali, agora trabalha com seriedade e disposição. Já fez duas viagens com os irmãos Tuaregs e com o salário recebido, comprou uma junta dos mais belos jamales da região.

Na tarde do sexto-dia, recebemos a notícia que este ano teremos a maior tempestade de areia, após anos de tranqüilidade. Tempestades de areia não são temidas apenas pelos transtornos causados pela sujeira. Seu maior dano é ver tudo que as pessoas construíram serem tomadas pelo medo da expectativa. É como se as pessoas ficassem paralisadas aguardando por um problema que pode vir ou não; pode ser hoje, ou não.

Para diminuir um pouco esse clima de ansiedade, alguns moradores e ex-combatentes foram chamados na capela logo pela manhã. Após um pouco de chá e discursos sem muita importância, o nosso clérigo explicou o risco que a nossa vila corria. “Não vamos sofrer muitos danos materiais, pois os muros da cidade são altos e largos. Tenho medo de perder as pessoas, pois precisamos ser avisados da chegada da tempestade com antecedência.”

Nossa vila possui 03 pequenas torres em cada extremidade da cidade e uma torre mais alta próxima da entrada e bem ao lado da nossa lujinha. Essa torre era usada no tempo das guerras e constantes invasões do passado. Hoje, seu uso era de um celeiro auxiliar. O seu nome: O minarete de Aslan, ou O minarete do Leão. Esse nome foi dado pelos antigos não só pelas belas esculturas que ficam na base da torre, mas pelo fato do vento ao bater nas janelas e detalhes da torre gerar um barulho semelhante ao urro de um Leão.

Por ser a maior das torres, O Minarete de Aslan não era e ainda não é o lugar mais agradável de estar. Como vizinhos do local, nossa responsabilidade é mantermos uma constante vigilância até o fim da lua cheia, quando chega o período das monções (de uma a três semanas). Os sinais da tempestade são conhecidos: as palmeiras do leste mudam o jeito de balançar, os animais mudam de ânimo e o céu muda de cor.

Do amanhecer até ao meio dia a vigília ficou por conta do bom amigo Kalil; na parte da tarde até o fim do por do sol, Nahan assumia os trabalhados, considerando ser o período mais quente e mais propício para problemas (ônus da juventude). À noite, como de costume, fico acordado fazendo minhas anotações e vigiando.

Foram estas noites que nos trouxeram até aqui. As dificuldades e os riscos contam e contarão a nossa história e, muitas vezes, precisamos de um pouco de solidão para analisar de onde viemos, onde estamos e para onde vamos com as atitudes que tomamos a cada dia.

Ao terminar os últimos relatórios sobre as vendas ao nosso Senhor, um vento frio soprou vindo da direção das palmeiras. A tempestade chegou. Agora resta-nos tocar o sino de alerta, descer a torre, fechar as portas e esperar.

Ao entrar na lujinha, encontrei meus amigos sentados na mesa de refeições. Estavam comendo um pouco de carneiro com lentilhas. Lentilhas de onde tudo começou e que agora víamos a possibilidade de ver tudo acabar. Os ventos sopravam na torre de Aslan fazendo o leão rugir. “Os animais estão seguros?” Perguntei ao jovem Nahan, tentando mudar o foco da conversa. “Estão bem tio. Todos e tudo estão bem”. “Só no resta esperar” Falou pausadamente o bom amigo Kalil soprando a xícara de chá quente.

Esperamos mais duas horas. O rugido do vento não parava. O que dizer nessa hora: na hora em que nenhuma palavra ou receita animadora funciona? Em silêncio, Nahan pegou o seu pequeno solidéu gasto pelos anos, colocou na cabeça e as palavras ditas em seguida não foram exatamente estas, porque as circunstâncias não me permitiram esse cuidado:

“Deus, ajude-nos a passar pela tempestade. Fizemos tudo o que foi possível fazer, mas o vento está acima do nosso chapéu. Mas Deus, sabemos que o Senhor está acima do vento”.

Demorou um pouco para amanhecer depois de tanta areia e vento. De fato, tivemos perdas materiais e de alguns animais com a tempestade. Felizmente, nenhuma vida humana se perdeu. Estávamos todos juntos no centro da vila quando uma jovem no meio da multidão perguntou: “O que fazemos agora?” Em resposta, nosso amigo Nahan respondeu com um tom de voz que nunca tínhamos visto antes: “Agora, construímos tudo de novo”.

terça-feira, 18 de maio de 2010

PARA QUE O NOVO ENTRE, O VELHO PRECISA SAIR


“Ridículo? Ridículo é saber que é preciso mudar
e ficar sentado esperando que isso aconteça sozinho”

Já se passaram mais de dois meses que iniciamos os trabalhos da lujinha. Vale registrar que, quando o nosso Senhor comprou este estabelecimento, o combinado foi que tanto o local quanto as mercadorias fariam parte do negócio. Entretanto, parte do estoque não estava catalogado.

Nesta terça-feira, após as orações e desjejum, resolvemos tirar todas as mercadorias que desconhecíamos para fora da loja. Qual não foi a nossa surpresa ao descobrir uma grande quantidade de ferramentas sem uso, tecidos novos e tinas de vinho velhas.

As ferramentas eram inadequadas. Como alguém pode comprar cento e cinquenta foices para vender no deserto? “É por isso que aquele galego vendeu tudo tão barato”, resmungou o velho Kalil. “Simplesmente ridículo”. Sem dó nem piedade, levamos as ferramentas para o bom Sarosh, artesão da cidade. Com as peças, também levamos a ordem: “Transforme tudo em algo que preste. De nada vale termos uma ferramenta que não tem utilidade”. E com parte do metal derretido, fizemos nossa primeira liquidação de arreiros para montarias. Vendemos tudo aos bons irmãos das caravanas e ainda ganhamos o frete das especiarias encomendadas. Uma pequena parte do metal foi reservado para “uma surbresa”, palavras do bom Sarosh.

Para os tecidos novos, mandamos fazer túnicas de domingo para o velho Kalil, duas batas para o pequeno Nahan e uma túnica para este pobre libanês. Como eram todos tecidos cor de anil e camisas brancas, quando saíamos juntos, a cidade nos chamava de O ciclo da vida. “Lá vai o menino, o homem e o velho”. Achávamos isso engraçado e pouco nos importava os comentários. Se não vai ajudar, então não atrapalhe cidadão.

Quanto às quatro tinas de vinho, levantei o machado até a altura dos ombros e comecei a destruir uma por uma. Nahan que não entendia nada perguntou para ao velho Kalil “Tio, por que não aproveitamos os vasos?” “Porque eles não possuem vinho, filho”. “Mas não podemos colocar vinho dentro?” “Não, vinhos e tinas envelhecem juntos. Do contrário, um atrapalha o tempo de maturidade do outro”. Mandamos moer os cacos e mandamos o pó para o Oleiro.

E depois de uma semana, ganhamos um novo espaço para expor as novitudes na lujinha e, finalmente, a casa perdeu o ar de bagunça que rondava o estabelecimento desde primeiro dia da nossa chegada. De nada adianta arrumar uma parte da vida e deixar a outra desorganizada ou perdida.

Depois de alguns meses, recebi um embrulho enrolado no tecido azul anil. Era uma estátua pequena de um caçador tuareg em cima de um cavalo árabe que é o Rei dos Cavalos. Na base da estátua, a seguinte frase: Para que o novo entre, o velho precisa sair.

A lujinha começava a dar seus primeiros passos em direção a um lar.

quarta-feira, 3 de março de 2010

TODO INÍCIO É ESTRANHO E DUVIDOSO


No início do Inverno, nosso Senhor chamou a sua presença dois dos seus servos: O primeiro era o bom amigo Kalil que cuidava das compras da casa e experiente guia de caravanas. O segundo era este Libanês que vos fala. Naquela época, eu tinha a responsabilidade das anotações das compras e vendas. Nosso Senhor esperava sentado em uma cadeira alta, no jardim interno da casa, próximo a uma oliveira. Não perguntei sobre o motivo do chamado. Quem pergunta muito acaba respondendo por algo que não deseja.

“Quero que vocês dois se preparem para uma tarefa que darei. Meu filho logo vai se casar e quero que a Vila onde a sua noiva nasceu se desenvolva e se transforme em um ponto de comércio próspero. Quero que vocês se mudem para esta Vila e ajudem as pessoas em segredo. Mas vou logo alertando: o povo que vive naquela cidadezinha é simples e acomodado com a própria pobreza. Não será fácil mas quero que seja feito”.

“Mas meu Senhor, perguntei com voz hesitante, e se falharmos?” Meu Senhor olhava em silêncio para os lírios plantados no jardim quando respondeu com as seguintes palavras: “Se eu escolhi você para o trabalho, então significa que é possível ser feito com o que temos, não? Agora vão e que as boas notícias cheguem em breve a minha casa”. “Mais uma coisa: quero que cuidem de uma pequena loja que comprei naquela Vila”.

Desde então, temos vivido desse pequeno estabelecimento. O velho Kalil, cuidando das compras e desse libanês resmungador, enquanto cuido dos negócios e tento entender a vontade do meu Senhor na minha vida.

Seria uma punição ou a conseqüência de um erro cometido?

Por que somos chamados para fazer algo que não gostamos, em lugares que não desejamos estar?

Perdi o conforto da casa do meu Senhor para viver de uma lujinha de idéias. De bom, só a companhia do velho Kalil e agora a presença desse pequeno estrangeiro, filho da desventura de perder seus pais no deserto.

Vou deixar tudo isso. Não por incapacidade, mas pela falta de entendimento do que deve ser feito.

Neste mundo, só existem dois tipos de pessoas: aquelas que conseguem compreender o que deve ser feito e aquelas que não conseguem.


Vamos parar de devaneios e abrir mais um dia que é hora dos trabalhos.

UM PRESENTE PARA LEMBRAR


“Quem conseguiria ouvir estas palavras? A realidade muitas vezes precisa ser apresentada com um pouco de fantasia para que a mudança seja algo suportável.”

A presença do pequenino na lujinha mudou o nosso cotidiano.

Preocupado com os possíveis falatórios do mercado, busquei orientação junto ao nosso Clérigo para ver se devíamos continuar ajudando o nosso convidado. “Você quer criar esse menino?” foi a pergunta direta que recebi. “Lembre-se que se você deseja entrar na vida de uma pessoa, você se torna responsável pelo bem estar dessa pessoa para todo o sempre. Quanto aos possíveis falatórios, só os mortos não se importam com as acusações. Só os mortos!”

Acordamos que o garoto passaria o dia na lujinha aprendendo e trabalhando conosco. No entardecer, ele dormiria na casa da Sra. Alice Anima, viúva e sogra do nosso Clérigo.

“Você descobriu o nome do garoto?” Informei que ele não se lembrava mais. Ele me disse que os pais o chamavam de docinho as vezes. Nahan significa Doce como Mel. “Esse é o nome então”.

Na manhã seguinte, levei o pequeno Nahan para anunciarmos as novitudes da nossa lujinha. O velho Kalil seguia na frente contanto a todos os acontecidos (como se fosse necessário, pois, tanto o nome quanto a rotina do garoto eram repassados de boca em boca). No meio do caminho, vejo um pequeno solidéu branco. Comprei depois de pechinchar muito (tem coisas que são incontroláveis para um pobre libanês). Coloquei o presente na cabeça do nosso pequeno e dei um beijo na testa dele, desejando bênçãos.

O solidéu significa que até o topo da cabeça a força é do homem, mas acima desse pequeno chapéu toda força pertence ao Grande Criador e Senhor do Universo. Esse é o seu primeiro presente Nahan. Guarde-o com carinho.

Com a mesma carinha risonha do nosso primeiro encontro, o pequeno responde: “Não é o primeiro tio, esse é o quinto presente”.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

SOBRE A GRATIDÃO


Remover formatação da seleção"Cada vez que você lê o texto é como se estivesse visitando a loja. Cada idéia que se gosta, que se usa, comenta ou critica, é uma mercadoria que se compra".

No outro dia após o evento da capela, a nossa pequena vila acordou com uma algazarra de galinhas cantando, patos berrando e o mercado que sempre se mostrou calmo, estava em festa. O culpado da bagunça era o meu pequeno convidado que corria de loja em loja dizendo que estava feliz e cheio de energia. Para cada um que passava, o pequeno dizia que as lentilhas da lujinha são as mais gostosas que já comeu. Após ganhar um “bom dia” e um sorriso, o padeiro retribuiu com um pedaço de pão com coalhada seca. As boas senhoras do entorno choravam e soltavam gritinhos dizendo que “o pequeno estava sorrindo!” “O pequeno estava feliz!”. E eu, que vivo preocupado com o que acontece da porta para dentro em minha vida, não dei mais importância para os acontecimentos matutinos.

Depois de minutos da abertura dos trabalhos, o velho Kalil, meu amigo que me ajuda nas compras, entra na lujinha dizendo: “Sua lentilha é o assunto do mercado. Prepare-se para um dia cheio”. Na certeza de que o nosso clérigo tinha se zangado com a minha resposta, fiquei esperando a visita de algum Conselho, Comissão ou qualquer outra coisa punitiva parecida. Entretanto, algumas pessoas entravam dentro do meu estabelecimento desejando comprar lentilhas. Uma senhora de gastos vestidos chegou a dizer que a muito tempo não via uma criança tão cheia de vida.

Sem entender, perguntei ao velho Kalil o que estava acontecendo. “Foi o garoto de ontem” disse com a voz calma, passando a mão na barba branca. “A criança que você ajudou ontem é um orfão que a comunidade encontrou perdido no deserto”. A história que me contaram é que ninguém conseguia fazê-lo feliz. Essa foi a primeira vez que ele demonstrou felicidade. Vi o pequeno passar correndo dizendo que a sua sopa de lentilhas é capaz de fazer qualquer um sorrir”.

Lentilhas não fazem milagres. Sei disso pois vendo lentilhas a muito tempo. Alguns pratos podem ajudar numa proposta de casamento ou selar um contrato importante. Mas uma coisa assim está além da capacidade culinária de um dono de lujinha.

O nosso pequeno personagem ouvia a nossa conversa encostado na porta da loja. Perguntei o motivo daquela alegria e gratidão. Afinal, era só um prato de lentilhas. “Acho que foi o seu tempero tio”, respondeu o pequeno sorrindo de uma forma simples.

Após muitas gargalhadas, o velho Kalil propôs que vendêssemos o tempero da receita junto com as lentilhas “Está decido! O tempero é o segredo da gratidão, meus amigos! É o tempero!”.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O dona, o que é graça?


Não minha senhora, não estou falando da manicure da esquina, mesmo sabendo que tal moçoila foi batizada com o nome de Maria das. Deixa pra lá. Sente-se aqui no balcão e vamos imaginar uma história fictícia de pura realidade enquanto enxugo os copos:

Certa feita, o pároco daquela pequena capela aqui em frente esperou que todos se acomodassem para o início da liturgia de domingo de manhã, quando o último enternado chegou (enternado é o sujeito que vai de terno para a igreja), ele fechou as portas da capela. Foi um estranhamento, pois a novidade mexia com o cotidiano dos acostumados a tudo dentro do tim tim por tim tim.

Nada de música, nada de leitura. Apenas um pedido daquele homem que estava lá na frente junto com um diácono que ficava assentado com cara de nada (diácono é uma coisa que eu não vi ainda para que serve, mas dizem que serve para servir). O pároco levanta a voz e diz: meus amados escrevam nos papeis que estão à sua frente o que vocês acham que significa a palavra “Graça”. Tenham um bom dia e até mais na liturgia das 19:00 horas.

Isso é coisa que se faça? Logo eu, dono de comércio novo, precisando de clientes para freqüentar, comprar e principalmente pagar, vou para capela fazer freguesia e não tenho nem a oportunidade de receber uma palavrinha amiga, nem panfleto minhas opiniões com ninguém? Melhor cuidar das lentilhas que recebi e pensar em uma boa promoção! Guardei o papel branco, atravessei a rua com passos duros e meti porta a dentro!

Atrás de mim um menino com cara de fome, perna de fome, braço de fome e o resto também. Tinha uns 6 ou 9 anos. Sou ruim dessas coisas. Ele olha pra dentro da lujinha e diz: moço, me dá um serviço pra fazer? Fitei aquela carinha, perguntei com voz dura por que ele não estava com a mãe. Ele me respondeu porque a mãe dele estava morta no cemitério (toma libanêss!- pensei comigo mesmo) ficamos olhando um para o outro por minutos. Perguntei se ele tinha dinheiro pra pagar um algo. Ele levantou os ombros e balançou a cabeça. Recebi o mais óbvio “não” da minha vida (toma libanêss!).

Hoje você não trabalha. Vamos comer primeiro. Levei um pouco da lentilha nova que comprei, coloquei bacon, cebola e temperos da minha amada terra na panela de pedra e comemos um cozido que fez a barriguinha do menino estufar. Ele comeu, sorriu e foi embora.

Fiquei parado relembrando tudo e sorrindo. Às 19:00 horas, entreguei o papel na capela com um punhado de lentilhas dentro.

SAINDO A PRIMEIRA FORNADA!


Meus caros visitantes & fregueses,

Quero compartilhar pequenas histórias com vocês. Elas não são inteiramente concretas nem inteiramente fantasias. Talvez sejam um pouco desses dois antagonismos. A melhor definição que posso dar é que são histórias venéreas de uma profundidade cistérnica, com efeito balsâmico.

Portanto, nada de ficar achando defeito, teorizando ou levando meu pobre nome para o Pastor da minha Igreja ou para Patrão. A Lujinha é simples e está começando agora.

Mesmo porque o que digo e escrevo não tem nada a ver com uma Organização. O que penso e digo em minha mercearia de idéias tem um haver com o meu coração.

Boa leitura.
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sexta-feira, 13 de novembro de 2009

arrumando as coisas


Bom, depois de alguns meses com a lujinha fechada, resolvi fazer uma arrumação nas coisas.
Vamos parar de guardar as idéias e vamos colocá-las na prateleira.


No máximo em uma semana, abriremos as portas.
É isso aí.