segunda-feira, 14 de junho de 2010

APAIXONE-SE

"Amor é fogo que arde sem se ver;"
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer

A lujinha já estava aberta e as pessoas entraram às compras. Teremos uma boa semana. Recebemos queijos defumados e damascos secos. Todos estavam ocupados e agitados para atender tanta gente no balcão. Todos menos Nahan. O seu olhar estava longe. Seu foco agora era ficar pensando em Elmira. Tanto que o velho Kalil teve que atender uma senhora que estava na frente de Nahan com um cesto de ameixas. “Desculpe-me minha senhora. O jovem está doente.”

Quando o sol se colocou no topo do dia, as atrapalhadas de Nahan já eram motivo de piada dentro da lujinha. “Ei, moço pegue uma caneca de Elmira, digo, de ervilha para o cliente”. “Kalil atira bra tudo quanto é lada; eu não. El-mira”, dentre outros jogos de palavras e brincadeiras provocativas. Mas nada tirava a cara de bobo e o sorriso de auto-satisfação do nosso jovem amigo. Por volta do fim da tarde, não aguentamos tanto mel. “Nahan, o que você quer que façamos para resolver isso?” Disse Kalil com a mão no ombro do jovem calado. Nahan olha nos olhos do velho amigo e dispara: “Tio, apresente meu pedido de casamento à família de Elmira. Quero me casar com ela.” Kalil já não sorria mais. Balbuciou um “mas” e ficou olhando para mim, balançando o braço como se eu tivesse que dar alguma resposta. Não aguentei e soltei uma gargalhada para os dois. “Libanês, eu não sou o pai desse inquieto”, respondi que ele era o mais velho e a tradição diz que os mais velhos representam as famílias dos noivos. “Mas seu libanês, você é mais velho do que Nahan vinte anos, disse Kalil com a voz embargada. “E eu sou 20 anos mais novo do que você Kalil. Logo, você é o representante, meu bom amigo”.

“Está bom. Com quem devo conversar?” “Com a mãe dela”, respondi já esperando uma reação explosiva. “Mãe de quem?” “Vou ter que sentar com a mãe dela para tratar do casamento?” Esbaforiu o Kalil já sentando sem cima das sacas de cevada. Explicamos que a senhora era viúva e que ela era a líder do grupo e a responsável pelos negócios e pela a sua única filha. Por isso o gênio forte. “Então eu não sei? Com tanta moça você teve que gostar da mais brava?” “Até os irmãos Tuaregs tem medo de negociar com esta mulher”. “Libanês! Você me paga!”.

Preparamos uma cesta com queijos, frutas e azeites, mandamos para a casa da moça e pedimos uma audiência para o dia seguinte. A família de Elmira se instalou do outro lado da vila onde ficam as arenas e vendas de animais. Esse era o negócio da família dela.

No dia seguinte Kalil e Nahan foram conversar com a ilustríssima senhora Alice Karim. A conversa foi tranqüila e a senhora Alice foi direta: “minha filha é o meu maior tesouro. Como este jovem vai sustentá-la?” “Com muito trabalho", respondeu Nahan com uma voz leve mais firme. A senhora Alice mandou chamar Elmira. A jovem chegou até a sala principal cobrindo o rosto, como se faz nos costumes. Elmira ouviu da mãe o resumo da conversa e a pergunta. “Filha: você ama este jovem?” A resposta afirmativa e o sorriso mesmo parcialmente escondido pelo véu não deixou dúvida sobre o desejo da filha. “Vi a capacidade do seu filho senhor Kalil quando a tempestade de areia tomou conta dessa vila. Vamos acordar os preparativos.

Kalil que antes estava reticente com a conversa agora ficava admirado com a firmeza e, ao mesmo tempo, doçura da senhora Karim. O dia desdobrou e os assuntos também. No final, os dois se despediram da mãe e da filha.

Em silêncio, o jovem e o velho voltam para a lujinha pensando na conversa que tiveram com aquelas mulheres simples e, ao mesmo tempo, tão encanadoras e enigmáticas. No mais, só a certeza que um apaixonado foi e dois apaixonados voltaram.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

CORTE, CONCENTRE, SIMPLIFIQUE

“A coisa mais importante é fazer da coisa mais importante a coisa mais importante”.

Duas casas destelhadas, as paredes da forja do amigo Sarosh, o portão da ala direita e, infelizmente a pequena capela estavam no chão. É interessante que só damos valor para algumas coisas quando já não temos mais essas coisas ao nosso lado. Para piorar, as pessoas não sabiam por onde começar a arrumar.

“Quem morava nas casas?” Perguntei já sabendo que a casa era de aluguel e que o dono das casas não morava perto de nós.”Ninguém morava lá” respondeu o amigo Sarosh. “Estão fechadas há meses”. “Onde o dono mora?” “Há dois dias daqui”. “precisamos avisar que a suas casas estão sem telhado e muito sujas pela areia. Aliás, precisamos de um mensageiro que vá até ele, pois vamos comprar as casas”. Sem entender nada, conseguimos um mensageiro que foi levar as “boas” notícias e a nossa proposta de compra. “E agora tio?” Perguntou o Bom Nahan ainda meio incrédulo diante de tanta determinação. “Chame as senhoras; mande limpar a casa”.

O nome dela era Elmira, que significa princesa. O Bom amigo Nahan chegou até a jovem berbere e perguntou se ela poderia ajudar na organização e limpeza das casas. Tudo combinado, a areia começou a sair e os detalhes da casa começaram a reaparecer. As mulheres retiraram um mundo de areia. Os homens retiraram as telhas quebradas e madeiras que precisavam de substituição.
“Kalil, chame os jovens e os fortes.” Reunidos em frente da forja do velho Sarosh. A ordem era reconstruir a oficina o mais rápido possível. “De onde vamos tirar as pedras, ferro e madeira?”, perguntou o meu bom amigo alisando as barbas brancas e apresentando um sorriso no canto dos lábios. “Retire da capela. Separe o essencial. Aproveite o resto como material de construção”.
Para piorar, meia dúzia de diáconos vieram conversar conosco. Na hora da crise, tudo o que não precisamos é de pessoas que não sabem da missa o terço e que só querem puxar para baixo, quando precisamos de pessoas que nos puxem para cima. “Senhores: querem nos ajudar, então as pás e os martelos estão logo ali. Se não, de-nos a devida licença. A conversa com nosso Clérigo foi mais tranqüila. Pedi apenas que confiasse e que indicasse o que era essencial.

A forja já estava funcionando; as casas já estavam limpas. Recebemos a resposta que o dono aceitaria a quantia que tínhamos mais três juntas de camelos jovens. “Onde conseguir camelos jovens depois de uma tempestade dessas?” Gritou enfurecido o bom Kalil. “Tenho os três mais belos Jamales da região. Pode levá-los” disse em tom firme o bom Nahan. “Tenho dois animais jovens. Leve-os também” surpreendeu Elmira com aqueles olhos verdes e atitude firme. “Não tenho um animal jovem, mas leve esta fêmea com este filhote. Para fechar o negócio, pedimos ao nosso Clérigo que era o dono da mamãe camelo e seu filhote e ao bom Nahan que levasse o pagamento.

Ao retornar, quase toda a cidade estava limpa. Faltava apenas o conserto do portão da ala direita que ainda não abria e forçava aqueles que passavam a entrar pelo portão próximo ao Minarete do Leão.

Quando os nossos viajantes chegaram, todos nós demos as boas vindas em frente ao jardim que separa as duas casas. Quando eles entraram, perceberam que a antiga casa deu lugar a nossa nova capela. Uma capela maior, mais confortável, e muito mais coerente com o nosso povo. Pouco se via da antiga Capela e a nossa idéia era desaparecer qualquer vestígio da antiga capela com a ampliação dos jardins das duas casas.

Todos reunidos, numa mistura de felicidade e muito cansaço, mesmo sendo tarde da noite, nosso Clérigo leu parte do livro de Neemias.

As coisas pareciam mais simples, as pessoas estavam mais próximas e o sentimento de resgate às nossas prioridades contagiava todos aqueles que estavam nas casas. Todos menos Nahan e Elmira que não pararam de trocar sorrisos e olhares um para o outro