quinta-feira, 22 de julho de 2010

ACERTANDO AS COISAS

“Se eu escolhi você para o trabalho, então significa que é possível ser feito com o que temos, não? Agora vão e que as boas notícias cheguem em breve a minha casa.

Mais uma coisa, quero que cuidem de uma pequena loja que comprei na Vila.”*

O Grande Cid Amim Aanisan
Senhor de terras, cidades e também nosso Senhor



Vamos abrir mais um dia que é hora dos trabalhos. Agora, o bom amigo Kalil não cuida mais das compras da lujinha. Esta é uma tarefa feita por Nahan. Quem diria: de pobre desafortunado para um promissor líder desse povo. Kalil quer se dedicar aos negócios de animais e transporte de mercadorias que precisam sair e chegar com a devida segurança.

Os acontecimentos que vocês presenciaram através das minhas narrativas foram devidamente registrados e enviados para o conhecimento do nosso Senhor, juntamente com a contabilidade da nossa lujinha. No último caderno encaminhado no mesmo dia do aceite de casamento de Kalil, escrevi ao nosso senhor as seguintes palavras: “Meu Senhor, de tudo o que temos visto e ouvido, entendemos que cumprimos a vossa determinação de prosperar nesta terra. Agora, se nos fosse permitido, rogo à sua bondade que dispense nosso amigo Kalil para que ele assuma os negócios da sua nova família. Peço também para que a nova família que agora é erguida pelas mãos de Nahan e Elmira seja responsável pelos negócios da sua loja. Quanto a mim, meu Senhor, continuo aos seus serviços enquanto durar a Sua vontade sobre a minha vida”.

A carta e os cadernos foram entregues ao nosso Clérigo que tinha uma audiência com o nosso Senhor, por algum motivo que desconheço. Quem pergunta muito acaba respondendo algo que não quer. Apenas aproveitei a ocasião e expliquei qual era o conteúdo de cada carta e, se possível, que o nosso sacerdote intercedesse pelo bom futuro dos nossos amigos. Após ouvir as minhas palavras recebi a promessa de ele seria testemunha dos fatos registrados. A sorte estava lançada.

Não tive coragem de contar aos outros o meu pedido. Levantaria falsas esperanças e isso seria muito ruim, principalmente às portas de dois casamentos. A solução foi focar no trabalho e não ficar pensando muito nisso, como se fosse possível não pensar muito nisso.

Enquanto a resposta não vinha, durante as minhas noites de insônia, ficava lembrando a conversa que tive na casa do nosso Senhor quando hesitei em aceitar a tarefa de me mudar para esta Vila. Somos chamados para fazer algo que não gostamos, em lugares que não desejamos estar. O que não me disseram é que podemos aprender a gostar de algo ou das pessoas que passam pelo caminho. Lembrei do olhar para os lírios plantados no jardim, lembrei da cadeira alta que fica no jardim interno, próximo a uma oliveira. Meu Deus! Como sou um estúpido! De fato, a ansiedade é uma espécie de burrice!

Por que esconder? Durante os dias de espera e preparativos, a vontade de deixar aquele lugar voltou a visitar os meus pensamentos. Agora a motivação era pelo senso de dever cumprido e não mais pela falta de entendimento.

Faltam dois dias para as festividades. Fui chamado pelo nosso Clérigo que me esperava no chafariz interno da nossa Capela. Deixei os afazeres da lujinha e fui ter com ele esperando sei lá o que. Estranho, na porta da casa de orações estava esperando alguns berbères com cavalos, coisa rara por esses lados... .

Após as saudações costumeiras, recebi três cartas com o selo da casa do nosso Senhor. A primeira carta tinha o nome de Nahan, a segunda o nome de Kalil. A terceira tinha o meu nome. A minha carta começava com a seguinte frase:

“Meu amigo Libanês, você compreendeu o deveria ser feito.”



* leia a postagem de 03 de março - TODO INÍCIO É ESTRANHO E DUVIDOSO

quarta-feira, 14 de julho de 2010

TODOS NÓS PRECISAMOS DE UMA CANAÃ



Avassalador
Chega sem avisar
Toma de assalto, atropela
Vela de incendiar
Arrebatador
Vem de qualquer lugar
Chega, nem pede licença
Avança sem ponderar
(Lenine)


Falta um pouco mais de um mês para o casamento de Nahan e Elmira. Muitos dos nossos clientes e amigos já confirmaram presença para as comemorações, não poucos já mandaram os seus presentes. Recebemos uma carga especial de vinho fresco e novidades. Teremos cordeiros, aves e um novilho inteiro para comemorar. As senhoras começaram a planejar as receitas dos pães. O cheiro de festa é doce e envolvente.

Kalil, que antes se prendia em tarefas domésticas e viagens de trabalho, agora dedica tempo e mais tempo em audiências com a mãe de Elmira. No final do dia, enquanto fechávamos as portas, Kalil me chamou no grande balcão de ébano para conversar. “Libanês, as coisas mudaram muito desde o dia que chegamos a essa vila. Com o casamento de Nahan, fico me perguntando o que faremos em seguida”. “O que você quer que eu faça”, usei a mesma frase que Kalil disse a Nahan, já esperando a resposta. “Quero ter uma referência na vida. Trabalhar na lujinha tem sido algo de muito valor. Entretanto, depois desses anos todos, entendo que é hora de mudar. As coisas não fazem sentido como antes.”

Sempre admirei a força e determinação de Kalil. Sua trajetória de trabalho se inicia ainda bem moço quando começou a trabalhar com o Pai do nosso senhor. Sempre gostou de cavalos, camelos, caravanas e viagens. Era um homem direto, com rosto rude mas com uma educação e polidez que nenhuma escola do outro lado do mar ou mesmo na velha Síria são capazes de produzir. Era o especialista em negócios com os irmãos Tuaregs, talvez pela sua origem e com os africanos mais ao sul, com certeza, por falar a língua Zulu, dominante daquelas terras. O conhecimento de um homem desses vale ouro e agora, vejo este ouro sendo lançado fora, pois o seu depositário não acha nele valor algum. “Estais cansado de tanto caminhar meu amigo. Está na hora de achar a sua Canaã.”

Estávamos olhando para os nossos copos com chá de pêssego e cassis em cima do balcão. Perguntei onde a Sra. Karim entrava nesse sonho. A resposta veio com um olhar de homem prestes a se entregar de mãos ao alto e desarmado: “meu amigo Libanês, ela é o sonho”. “Então, meu caro amigo, aqui está a resposta da sua pergunta”.

A questão maior agora era como declarar esse amor. “Apresentar o sentimento de jovens é coisa relativa fácil (no caso de Nahan, suamos como chaleiras). Mas não cabe um papel desses a um homem maduro e a uma mulher na posição da Sra Karim. “Libanês, vivo um dilema que só os altos céus podem ajudar”. “Karim é a minha Canaã”.

O poeta escreveu certa feita que existem duas belezas: a que se vê e a que se sente. A beleza vista é a que nos chama a atenção para os olhos, para o corpo e para a voz. Mas a beleza que se sente é aquela que sentimos a falta da pessoa quando esta não esta por perto. O sentimento de Kalil já alcançou estas duas belezas.

Ficamos matutando um pouco mais agora olhando para os copos vazios. Acabou-se o chá que trouxemos do outro lado do mar. Agora só a lembrança doce das frutas e do licor. Quem poderia representar o nosso amigo em nome desse pedido? Abri o livro da sabedoria de Salomão. Com tantas mulheres, vai ver que ele deixou uma dica em código que só pode ser interpretada por homens desesperados como nós. Nada foi encontrado. Ficamos folheando livros sem um objetivo até nos depararmos com uma folha em branco.

“Kalil. Tive uma idéia”. Meu velho amigo vendo o meu olhar para a folha em branco desabafou: “a mais de vinte anos, toda vez que você faz essa cara, eu me meto em algum problema”. “Já escuto o barulho de muitos cavalos saindo dessa sua cabeça. E pare de levantar a mão e de sorrir me pedindo calma!”

Depois de acalmar o leão, pedi ao velho amigo que, no outro dia, marcasse um encontro com a sua Canaã. Ele seguiu as instruções (ou por desespero, ou por esperança, ou pelos dois) e disse a ela que ele precisava se afastar um pouco para conseguir expressar a imensa quantidade de sentimentos que fervilhava seu coração. Estávamos no início da semana e a Sra. Karim pediu com voz calma que ele voltasse no final dessa, pois também estava com muitos sentimentos, alguns desses já esquecidos pelo tempo.

“O que ela quis dizer com sentimentos esquecidos... Libanês?” “Isso é quase um sim, meu amigo. Isso é quase um sim.”

Convenci o velho amigo que o mais sensato era dormir. Após vencê-lo pelo cansaço, fiquei com a minha insônia, a minha folha em branco e alguns livros abertos. Meus pensamentos retornaram para as palavras do rei Salomão, mas agora em outro livro.

É interessante como as palavras inspiram; como acabamos por mudar o nosso jeito de pensar sobre um determinado assunto ou pessoa quando lemos determinadas palavras que se organizam e formam frases únicas.

Acordei o meu bom amigo antes do sol aparecer. Apresentei a idéia e as palavras que se formaram. Ele consentiu e escreveu o seguinte dizer ma frente do envelope:

“Doce Karim, receba estas palavras que representam o meu sentimento. Entretanto esta poesia está incompleta. Somente as suas palavras podem completá-la”.

* “Dize-me, ó tu, a quem ama a minha alma: Onde apascentas o teu rebanho, onde o fazes descansar ao meio-dia; pois por que razão seria eu como a que anda errante junto aos rebanhos de teus companheiros?

Se tu não o sabes, ó mais formosa entre as mulheres, sai-te pelas pisadas do rebanho, e apascenta as tuas cabras junto às moradas dos pastores.

Formosas são as tuas faces entre os teus enfeites, o teu pescoço com os colares.

Enfeites de ouro te faremos, com incrustações de prata.
Eis que és formosa, ó meu amor, eis que és formosa; os teus olhos são como os das pombas.

Vem comigo do Líbano, ó minha esposa, vem comigo do Líbano; olha desde o cume de Amana, desde o cume de Senir e de Hermom, desde os covis dos leões, desde os montes dos leopardos.

Enlevaste-me o coração, minha irmã, minha esposa; enlevaste-me o coração com um dos teus olhares, com um colar do teu pescoço.

As muitas águas não podem apagar este amor, nem os rios afogá-lo; ainda que alguém desse todos os bens de sua casa pelo amor, certamente o desprezariam”

Em resposta, o nosso amigo recebeu as seguintes palavras:

** “Não me instes para que te abandone, e deixe de seguir-te; porque aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus.”


* trecho do livro de Cantares de Salomão
** trecho do livro de Rute