domingo, 30 de maio de 2010

O MINARETE

“A palavra minarete é derivada da palavra minar ou farol. Talvez, essas estruturas tenham derivado das torres de sinalização e vigia.”





As vendas da nossa lujinha de idéias caminham bem. A pequena vila já tornou ponto de parada das caravanas e negócios da região. Os aldeões que antes eram reféns de um comportamento sem perspectivas, agora propõem parcerias, ajudam e são ajudados.

A areia que mede o nosso tempo aqui está se findado. O bom Kalil, que antes se apresentava forte e bem disposto, agora se dedica às tarefas domésticas e reclama a cada necessidade de sair, até para a vistoria dos poços de água que duram menos do que um dia de caminhada. Nahan é agora um jovem. O menino que antes corria pelas ruas aprontando aqui e ali, agora trabalha com seriedade e disposição. Já fez duas viagens com os irmãos Tuaregs e com o salário recebido, comprou uma junta dos mais belos jamales da região.

Na tarde do sexto-dia, recebemos a notícia que este ano teremos a maior tempestade de areia, após anos de tranqüilidade. Tempestades de areia não são temidas apenas pelos transtornos causados pela sujeira. Seu maior dano é ver tudo que as pessoas construíram serem tomadas pelo medo da expectativa. É como se as pessoas ficassem paralisadas aguardando por um problema que pode vir ou não; pode ser hoje, ou não.

Para diminuir um pouco esse clima de ansiedade, alguns moradores e ex-combatentes foram chamados na capela logo pela manhã. Após um pouco de chá e discursos sem muita importância, o nosso clérigo explicou o risco que a nossa vila corria. “Não vamos sofrer muitos danos materiais, pois os muros da cidade são altos e largos. Tenho medo de perder as pessoas, pois precisamos ser avisados da chegada da tempestade com antecedência.”

Nossa vila possui 03 pequenas torres em cada extremidade da cidade e uma torre mais alta próxima da entrada e bem ao lado da nossa lujinha. Essa torre era usada no tempo das guerras e constantes invasões do passado. Hoje, seu uso era de um celeiro auxiliar. O seu nome: O minarete de Aslan, ou O minarete do Leão. Esse nome foi dado pelos antigos não só pelas belas esculturas que ficam na base da torre, mas pelo fato do vento ao bater nas janelas e detalhes da torre gerar um barulho semelhante ao urro de um Leão.

Por ser a maior das torres, O Minarete de Aslan não era e ainda não é o lugar mais agradável de estar. Como vizinhos do local, nossa responsabilidade é mantermos uma constante vigilância até o fim da lua cheia, quando chega o período das monções (de uma a três semanas). Os sinais da tempestade são conhecidos: as palmeiras do leste mudam o jeito de balançar, os animais mudam de ânimo e o céu muda de cor.

Do amanhecer até ao meio dia a vigília ficou por conta do bom amigo Kalil; na parte da tarde até o fim do por do sol, Nahan assumia os trabalhados, considerando ser o período mais quente e mais propício para problemas (ônus da juventude). À noite, como de costume, fico acordado fazendo minhas anotações e vigiando.

Foram estas noites que nos trouxeram até aqui. As dificuldades e os riscos contam e contarão a nossa história e, muitas vezes, precisamos de um pouco de solidão para analisar de onde viemos, onde estamos e para onde vamos com as atitudes que tomamos a cada dia.

Ao terminar os últimos relatórios sobre as vendas ao nosso Senhor, um vento frio soprou vindo da direção das palmeiras. A tempestade chegou. Agora resta-nos tocar o sino de alerta, descer a torre, fechar as portas e esperar.

Ao entrar na lujinha, encontrei meus amigos sentados na mesa de refeições. Estavam comendo um pouco de carneiro com lentilhas. Lentilhas de onde tudo começou e que agora víamos a possibilidade de ver tudo acabar. Os ventos sopravam na torre de Aslan fazendo o leão rugir. “Os animais estão seguros?” Perguntei ao jovem Nahan, tentando mudar o foco da conversa. “Estão bem tio. Todos e tudo estão bem”. “Só no resta esperar” Falou pausadamente o bom amigo Kalil soprando a xícara de chá quente.

Esperamos mais duas horas. O rugido do vento não parava. O que dizer nessa hora: na hora em que nenhuma palavra ou receita animadora funciona? Em silêncio, Nahan pegou o seu pequeno solidéu gasto pelos anos, colocou na cabeça e as palavras ditas em seguida não foram exatamente estas, porque as circunstâncias não me permitiram esse cuidado:

“Deus, ajude-nos a passar pela tempestade. Fizemos tudo o que foi possível fazer, mas o vento está acima do nosso chapéu. Mas Deus, sabemos que o Senhor está acima do vento”.

Demorou um pouco para amanhecer depois de tanta areia e vento. De fato, tivemos perdas materiais e de alguns animais com a tempestade. Felizmente, nenhuma vida humana se perdeu. Estávamos todos juntos no centro da vila quando uma jovem no meio da multidão perguntou: “O que fazemos agora?” Em resposta, nosso amigo Nahan respondeu com um tom de voz que nunca tínhamos visto antes: “Agora, construímos tudo de novo”.

terça-feira, 18 de maio de 2010

PARA QUE O NOVO ENTRE, O VELHO PRECISA SAIR


“Ridículo? Ridículo é saber que é preciso mudar
e ficar sentado esperando que isso aconteça sozinho”

Já se passaram mais de dois meses que iniciamos os trabalhos da lujinha. Vale registrar que, quando o nosso Senhor comprou este estabelecimento, o combinado foi que tanto o local quanto as mercadorias fariam parte do negócio. Entretanto, parte do estoque não estava catalogado.

Nesta terça-feira, após as orações e desjejum, resolvemos tirar todas as mercadorias que desconhecíamos para fora da loja. Qual não foi a nossa surpresa ao descobrir uma grande quantidade de ferramentas sem uso, tecidos novos e tinas de vinho velhas.

As ferramentas eram inadequadas. Como alguém pode comprar cento e cinquenta foices para vender no deserto? “É por isso que aquele galego vendeu tudo tão barato”, resmungou o velho Kalil. “Simplesmente ridículo”. Sem dó nem piedade, levamos as ferramentas para o bom Sarosh, artesão da cidade. Com as peças, também levamos a ordem: “Transforme tudo em algo que preste. De nada vale termos uma ferramenta que não tem utilidade”. E com parte do metal derretido, fizemos nossa primeira liquidação de arreiros para montarias. Vendemos tudo aos bons irmãos das caravanas e ainda ganhamos o frete das especiarias encomendadas. Uma pequena parte do metal foi reservado para “uma surbresa”, palavras do bom Sarosh.

Para os tecidos novos, mandamos fazer túnicas de domingo para o velho Kalil, duas batas para o pequeno Nahan e uma túnica para este pobre libanês. Como eram todos tecidos cor de anil e camisas brancas, quando saíamos juntos, a cidade nos chamava de O ciclo da vida. “Lá vai o menino, o homem e o velho”. Achávamos isso engraçado e pouco nos importava os comentários. Se não vai ajudar, então não atrapalhe cidadão.

Quanto às quatro tinas de vinho, levantei o machado até a altura dos ombros e comecei a destruir uma por uma. Nahan que não entendia nada perguntou para ao velho Kalil “Tio, por que não aproveitamos os vasos?” “Porque eles não possuem vinho, filho”. “Mas não podemos colocar vinho dentro?” “Não, vinhos e tinas envelhecem juntos. Do contrário, um atrapalha o tempo de maturidade do outro”. Mandamos moer os cacos e mandamos o pó para o Oleiro.

E depois de uma semana, ganhamos um novo espaço para expor as novitudes na lujinha e, finalmente, a casa perdeu o ar de bagunça que rondava o estabelecimento desde primeiro dia da nossa chegada. De nada adianta arrumar uma parte da vida e deixar a outra desorganizada ou perdida.

Depois de alguns meses, recebi um embrulho enrolado no tecido azul anil. Era uma estátua pequena de um caçador tuareg em cima de um cavalo árabe que é o Rei dos Cavalos. Na base da estátua, a seguinte frase: Para que o novo entre, o velho precisa sair.

A lujinha começava a dar seus primeiros passos em direção a um lar.